"Não há um milímetro do mundo que não seja saboroso" (Jean Giono)

terça-feira

coração descontrolado

não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
vejo o teu rosto parado numa fotografia e a memória
que guardo de ti é tão diferente da realidade assustadora das fotografias.
mas não vou mentir. estou cansado de mentir.
a minha vida também és tu, o teu rosto parado na minha memória.
a minha vida és tu e todas as mãos que me seguraram e me quiseram,
todos os lábios que me beijaram, todas as línguas que me desenharam figuras
na pele, todos os dentes que me morderam, todas as vozes que me disseram amo-te
e me fizeram acreditar nisso. não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
não és quase nada, mas não quero e não vou fingir que nunca exististe.


[José Luís Peixoto]


Porque há retratos carregados de sentimentos que podem viver uma vida inteira adormecidos dentro do meu peito. mas chega sempre o tortuoso dia em que acordam para atormentar a minha alma, sacudir o meu coração e tremer incessantemente no meu interior.
pessoas. lugares. momentos. vidas. sorrisos. lágrimas. gritos. mimos. um mundo de sensações. guardado num lugar tão pequeno e tão inquieto como o meu coração de comboio descarrilado.

[Foto: Tim Walker]

segunda-feira

ter o coração carregado sem saber dividi-lo

trago amores no peito,
como quem carrega flores no regaço.
cada flor um inverno,
cada flor um verão.
elas sobrevivem ao longo dos anos,
eu é que não sei mais como viver com elas a florescerem todos os dias no meu coração.
achava-me incapaz de ter um jardim, de cuidar dele...
mas dou por mim a rega-lo todos os dias, a cuida-lo e a não querer me desfazer de nenhuma flor.

ser jardineiro não é fácil, é torturoso...ter amor por todas elas, mas não saber viver em paz com isso. não sei se quero continuar a sê-lo, mas também não quero/sei como me demitir sem que as minhas flores sintam que desisti delas.

quinta-feira

dos meus olhos..tua presença/ausência...da certeza...dos sonhos..da felicidade...da vida

os meus olhos sorriem em silêncio, porque têm a certeza de não temerem à próxima página do livro. por saberem ler entre linhas. por olharem muito para além do evidente. por se alimentarem dos sonhos que crescem na alma. por vê-los aproximarem-se sem pensar no tempo ausente.
os meus olhos sorriem em silêncio para ti, porque tu és a razão da luz que neles brilha. por sentirem falta do teu olhar verde.
sorriem, por não te ter, mas sempre te terem.

e a lembrança do frasco de perfume esquecido a aumentar, de chinelos conjugais no corredor, de outra escova de dentes no copo, e de repente uma vozinha de pavio de círio

- Você sabe o que é ter saudades de uma escova de dentes, amigo?

Por acaso sei, enfim julgo que sei mas calo-me. Uma escova de dentes cor de rosa, com pêlos brancos um bocadinho desgrenhados, uma escova de dentes linda a iluminar-me uma zona escondida da alma.

[Texto: António Lobo Antunes

Foto: Katia Chausheva]


quarta-feira

Não estou a conseguir...a minha alma é uma sala desarrumada!


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